quarta-feira, 23 de julho de 2014

Se essa rua fosse minha eu mandava eternizar

Casario de Itabaiana

Vez em quando volto à cidade onde passei a infância e juventude. Na memória, a minha reflorida aurora, um mundo que sobrevive no mais recôndito do meu pensamento. Outro dia reencontrei uma antiga residente da Rua Floriano Peixoto, onde morei por muitos anos. Remetia a uma calçada de sombra e brisa fresca nas tardes de domingo, a calçada do “seu” João dos Anjos, uma esquina que era espécie de clube dos garotos da rua. As tardes azuis intermináveis em frente à casa da antiga namorada na Rua Floriano Peixoto, os bilhetinhos e as brincadeiras no meio da rua.

“Dizei, senhora viúva
Com quem quereis casar,
Se é com o filho do Conde
Ou com o filho do General.”

A pobre senhora viúva acabou tendo que casar à força com os generais impiedosos, duros na sua missão de garantir os dotes do “rei mal coroado”. Os meninos cresceram e desapareceram a esmo pelas quebradas do mundaréu. Onde andará Didi e sua irmã tão magrinha, alvo dos meus primeiros lampejos de afeto pelas fêmeas? Ando por essas ruas apurando o olfato rombudo, tentando sentir os cheiros do passado, perseguindo alguma sombra insólita naqueles becos e ruelas da beira da linha, rua da Palha, Alto do Major, Alto dos Currais. Incerta, quanto é incerta a nossa vida, a rua mudou de sentido. Não é só a cor nova da fachada das casas, as caras estranhas, os sons angustiantes nos derradeiros estertores da mediocridade. Só uma sonoridade não mudou: a voz rachada do meu compadre Raminho do Bode na sua Difusora “A Voz de Itabaiana”, setenta anos no ar. Fora isso, não há mais nada. A cidade vazia não me reconhece. Eu, vazio e inquieto, não sou convidado para essa festa inconsistente de uma comunidade que zomba feroz da minha saudade.

Dobrando a esquina de antigas emoções, percebi que eu não era mais morador daquele lugar. Na rua que era minha, outras pessoas me olham com ar desconfiado. Ninguém senta mais na calçada de “seu” João dos Anjos nas tardes ensolaradas e nas noites estreladas. Por acaso, encontro “Foguetão”, antigo colega e vizinho. Cadê Dudé? - Morreu de cana. E Gonçalo? - Teve AVC e morreu de repente. O próprio “Foguetão” é o retrato da morte. Magro, acabado, pele ressecada, amarelo, com os olhos fundos. E Soninha, ainda mora aqui? – Foi pro Rio, casou, largou o marido, parece que deu pra puta. Foi então que percebi que eu mesmo não ando muito bem, que estou sumindo pouco a pouco, que nem as estrelas do céu são as mesmas do meu tempo. Uma a uma, as coisas vão sumindo. Eu inclusive. 


3 comentários:

  1. taí, grande mozart, dessa vez não resisti: bela crônica! remeteu-me aos bons tempos de rubem braga, carlinhos oliveira, fernando sabino... por aí, esses que conheces muito bem. de um lirismo incomum nos tempos sem pedras poéticas no caminho. bonita. nem precisavas evocar: tem o cheiro gostoso de um passado que estará sempre presente em nossas vidas! putabraço!

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  2. " A vida é, pois, uma constante saudade."(Cecília Meireles).

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  3. Faz lembrar Itabira de drummond,O ladrão de Lêdo Ivo, A Casa do Berço Azul de Cora Coralina,no seu livro de cordel...da minha rua...se eu podesse... mandaria ladrilhar com pedrinhas de Turmalina Paraíba,são lindas!

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