sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Mal estar a bordo

Passageiros passam dificuldades nos ônibus coletivos


“Cidade de lábios tristes e trêmulos, onde encontrar o asilo na tua face?” – Roberto Piva


Contei ontem sobre o medo que impera na cidade. A violência criando um vácuo insano na comunidade. Vindo de plagas ermas e estranhas, o velhinho conversa com a velhinha. Ela, cocó apurado, vestidinho limpinho, florido, gordinha. Ele, chapéu de massa antigo, óculos fora de moda e roupa “engomada”. Sentados na primeira fila de poltronas do coletivo.

--- Olhe, eu se fosse o governo, botava esses bandidos tudinho pra trabalhar, pra suar e não pensar besteira. As mulheres trabalham na cadeia, por que os homens ficam deitados nas camas ou no chão, só pensando em fazer o mal?

Isso era o que dizia a velhinha para o seu companheiro de viagem. É uma das pessoas que não defendem o extermínio puro e simples dos bandidos, como certo companheiro meu. Contentava-se com trabalho forçado.

O ônibus prosseguia no seu conservadorismo reacionário de andar por uma só faixa, a da angústia social. Numa parada, entrou o negão com a cruz suástica tatuada na testa, com seu charme de hippie de uma contracultura contraditória. Cada um ficou sozinho com seu temor, até o velhinho e sua dama de outra época. O cobrador sentiu um desejo absurdo de ter um alvará de soltura e descer daquele ônibus para cuidar de sua vida marinheira, que o que ele queria mesmo era ser navegador, e não contemplador impassível das misérias urbanas. Órfão de vôo, ficou alimentando sua falta de fôlego.

Mas o negão sorriu pra um e pra outro, botou as moedinhas do troco na sacolinha suja e foi se sentar na última poltrona. Os olhos dos passageiros convergiram para sua cabeça afro doida, seu arranjo capilar esquisito. Cada um tentando construir mentalmente a trajetória do negão com a cruz suástica na testa. “Um demônio”, pensou a velhinha. “Saiu da cadeia agorinha”, imaginou o cobrador. O velhinho com seu tic nervoso, puxando as orelhas grandes, não pensava em nada a não ser na cena antiga do cavalo-marinho para onde ele fugia nos momentos de tristeza, capitão do folguedo que foi.

O dia finalmente nascia de todo entre as curvas e brumas de uma noite mal chovida. O tempo neurótico daquele ônibus deu um tempo. O veículo engolia sua velocidade como destino a ser cumprido, saltando e mergulhando nas poças e nos cansaços daquele povo amargo, mal dormido e medroso. A velhinha apareceu de novo com o sorriso do sol e com a saída do negão.

--- Pensa que eu tive medo? Olhe aqui minha Bíblia. Jesus é minha fortaleza e tudo posso em seu nome. Ta amarrado em nome de Jesus.

E bateu na Bíblia com suas mãos fortes de velha mourejadora.  

“Renegamos ao sepulcro a piedade cristã”, escreveu um poeta do Piauí. Nesta terra onde canta a precisão, Lúcifer mendiga um baseado na paisagem sucata de uma cidade onde pulsa um milhão de mal estar e culpa.  








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